Causos do Urubucaru - O noivado do Raul.


            A vida para mim sempre foi uma grande aventura. Nas andanças por este mundo de Deus vamos aprendendo a trilhar os mais difíceis caminhos. Na memória ficam as lembranças mais agradáveis, motivação constante para continuar desbravando, abrindo picadas, conhecendo pessoas, ouvindo histórias, vivenciando perigos e emoções, entrelaçando nossas vidas com outras. Das pitorescas história que me vem na lembrança; uma das mais engraçadas foi o noivado do Raul. Fato acontecido lá pelo meu saudoso Urubucaru, que narro neste momento para os amigos que já se acostumaram com meus causos.
                                               Tradição, trajes típicos. Rodeio crioulo.

             O Raul era um gringo xucro. Criado lá pelas bandas do jardim de Adão, município de Catuípe. Veio parar no Urubucaru por estas questões de destino. Ele era empregado dos irmãos Brezolin, agricultores que vieram daquele canto do mundo adquirir terras em São Miguel das Missões. Compraram alguns hectares no distrito do Urubucaru, quando aquele rincão ainda pertencia ao município de Santo Ângelo. Parte das terras  que eles compraram pertencia ao meu finado sogro. Um dos irmãos, o João, veio a ser meu concunhado e posteriormente compadre.
                                     Ruínas de São Miguel das Missões

Nestas terras compradas por meu então futuro compadre, havia um morador antigo, um agregado do finado Dinarte (meu sogro). Seu Olmiro vivia em um ranchinho pequeno, para não dizer minúsculo, junto com dona Ernesta, sua mulher e a Lovane, filha mais nova. Era um índio touro, peleador, criado campo a fora, bem longe da civilização. Tinha seu próprio código moral e agia em conformidade com ele. Bruto, mas honesto, sincero e autêntico. Com ele não existia meio termo: Certo é certo... errado é errado e ponto final! As diferenças de opinião podiam ser resolvidas facilmente na base da força física - na peleia! E porque pelejar era normal, andava sempre com uma faquinha bicuda na guaiaca, mais afiada que língua de sogra. A carneadeira era usada para quase tudo, sangrar uma rês, capar porco, cortar unha, aparar casco de cavalo e pela perfeição do fio dava até para fazer a barba. Seu Olmiro podia esquecer qualquer coisa em casa, mas nunca aquela xerenga.
            Pois o destino colocou frente a frente o Raul e a Lovane, filha caçula do Olmiro. Jovens, bonitos e com muita saúde, graças a Deus, vivendo naquele solitário pedacinho de paraíso, a paixão incendiou os dois corações. O fogo da paixão nada respeita. Devora, consome o vivente... lá por aqueles capões de mato, no fundo do campo na beira do lajeado o fato se consumou! E não poderia ter sido diferente! Se amaram intensamente, alheios a tudo e a todos. Livres do preconceito, sequer pensaram no código de ética do seu Olmiro e nas possíveis consequências. Que energias maravilhosas movimentam o amor! Quanta beleza, quanto poder! Mas depois... num breve momento de reflexão, a mente parece engendrar coisas. Não chega a ser arrependimento, mas começa tardiamente medir as dimensões do feito. Passada aquela euforia, as coisas jamais voltariam a ser do jeito que eram antes. O comportamento da Lovane mudou e o Raul começou ficar mais arredio. O velho Olmiro, tarimbeiro, não deixou de perceber a mudança no ânimo dos jovens. Principalmente porque as visitas do Raul lá no ranchinho, já não eram tão frequentes. O Xiru foi armazenando na mente as informações que lhe chegavam. Uma conversinha aqui, outra ali. Catando fragmentos o velho chegou à conclusão final, que o Raul havia feito mal para a Lovane, justamente a filha mais nova! Isso não poderia ficar assim. O mal tinha que ser reparado!
                                                             Chimarrão no galpão

      Nessa época o Raul já andava com medo de alguma represália, embora seu coração clamasse pela presença da enamorada, ele não podia deixar de pensar na rudeza nem na fama do pai da moça. Decidiu ir embora dali. Voltar para o Jardim de Adão, lá para as bandas de Catuípe, afinal era o único refúgio que conhecia. Comentou sua decisão com amigos e companheiros de trabalho. Esqueceu que lá onde o diabo perdeu as botas, as notícias se espalham mais rápido que nas atuais redes sociais. Não sei como... mas é assim! Rapidamente chegou aos ouvidos do velho Olmiro que o Raul estava disposto a fugir. Por sua vez, como pai, não poderia deixar que tudo transcorresse desta maneira. Sua filha não poderia ficar em desonra. Como aquela menina, despojada de sua virgindade, iria conviver naquela sociedade, sem ter um marido para ampará-la? Definitivamente não poderia ficar assim.
                                           Cena capturada no Urubucaru final dos anos 80

          Um dia destes, quando chegou o final de semana, no sábado à tarde, seu Olmiro mandou o Celso, seu neto, de uns sete anos de idade, transmitir um recado para que o Raul fosse no rancho tomar um chimarrão; no domingo bem cedo. Era o tipo de convite que não podia ser recusado. Embora cheio de desconfiança o gringo não teve outra saída senão confirmar o encontro. Cedinho, chegou no rancho. O velho Olmiro estava sentado num dos cepos que serviam de banco, na sombra de um cinamomo antigo. Bombacha remangada, chinelo de couro à moda campeira, melena ensopada de glostora e a carneadeira embainhada na guaiaca, visivelmente e à feição da canhota caso precisasse. Sorridente o velho se levantou, com certa agilidade, para cumprimentar o moço; já gritando para dona Ernesta que preparasse o mate. Nestas horas o gringo estava mais desconfiado do que cego que tem amante. Foi convidado para entrar e se acomodou num sofazinho antigo, surrado pelo tempo, Olmiro sentou-se também, com calma, fitando o gringo com um olhar intrigante; os dois estavam frente a frente e muito próximos, pois o rancho era minúsculo. Dona Ernesta trouxe a cuia e a chaleira entregando-as nas mãos do anfitrião, cumprimentou rapidamente o visitante e se retirou. Conforme manda o ritual do chimarrão, Olmiro serviu o primeiro mate para si, sorvendo com calma enquanto puxava assunto com o convidado. A cuia roncou e calmamente foi reabastecida e alcançada com a destra para o Raul. Mal este pegou a cuia na mão levou-a até a boca, começando a sorver a infusão, o velho com a canhota ligeira desembainhou a faquinha bicuda, parecia mais afiada que nunca aquela xerenga! O Raul não teve tempo nem de pensar... só percebeu o cutucão que furou a camisa e já começava a cortar a pele, logo abaixo do mamilo esquerdo.
 - Ai, ai, ai, ai Seu Olmiro! Tá machucando!
O velho que falava com uma voz empolada, como se estivesse com uma batata quente na boca não frouxou a pressão, continuo cutucando o peito do Raul, que nestas horas parecia um peru, de tão vermelho.
 - É pra machucar mesmo bicho véio!
Falou o Olmiro com aquela voz esquisita. E continuou.
 - Quero saber que história é essa do senhor estar querendo ir embora pra Catuíbes!
Nestas alturas da conversa, já havia uma pequena mancha de sangue na camisa do Raul, mas o velho não aliviava a pressão.
 - Que é isso seu Olmiro? Não vou embora não!
Retrucou Raul...De olho arregalado
Então o vaqueano fitou os olhos apavorados do gringo, lentamente foi aliviando a pressão do ferro branco no peito do vivente. Após alguns segundos balbuciou:
 - Então podemos combinar o casamento...
            E ali, naquele momento tão especial e alegre, o noivado foi realizado. Lovane e Dona Ernesta, que estavam encorujadas na cozinha do rancho, sorriram e se juntaram à roda de chimarrão. Ao meio dia, todos felizes, engraxaram os beiços numa costela bem gorda, assada no fogo de chão. Compromisso selado, Raul agora tinha permissão oficial para frequentar o rancho na quarta feira e no domingo!
            Essa é uma linda história de amor, vivida lá no Urubucaru e não termina por aí. Depois teve o casamento, de papel passado, mas essa é outra história... Depois eu conto para vocês!
                                                 Bons tempos vividos no Urubucaru



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