Um tal Pedro Castanho

    Dinossauros ainda existem. Quem não acredita neles (ainda vivos) é porque não conhece o Urubucaru. Pois aquele rincão, perdido num canto qualquer do município de são Miguel das Missões, abriga espécimes há muito consideradas extintas, pelo progresso e pela concentração de almas vivendo nas cidades que se esparramam por aí a fora neste mundo de meu Deus.
                                                             Ruinas de São Miguel

        O Pedro Castanho certamente é um dinossauro vivo. Adianto aos céticos, principalmente aqueles que foram criados na capital, ou qualquer outra grande cidade, que este xiru representa a história viva e real deste Rio grande de Deus. Na simplicidade da campanha e na dureza da estirpe, o homem preserva valores já esquecidos por sociedades cada vez mais individualistas e demasiado materialistas e aculturadas.

       Para não dar morto por testemunha, seu Pedro está lá, bem vivo e bem forte. Faz alguns anos que não o vejo, mas sempre recebo notícias vindas daquele rincão dizendo que ele está muito bem; com seus oitenta e tantos janeiros. Confesso que sou um admirador do seu Pedro. Não porque ele tenha feito algo grandioso. Ou ao menos tivesse um dom qualquer, destes que se traz do berço, tornando pessoas comuns em celebridades. Ao contrário! O índio foi desprovido de tudo. Nem plata nem pessuelos; sem cultura e sem berço. Mas nem ele mesmo imagina o quanto é sábio em sua ignorância; o quanto ele poderia ensinar aos mais altos expoentes de academias.

            Pois o Índio velho jamais teve conhecimento das letras. Dos confortos da vida moderna, tal como a luz elétrica, somente agora, pouquinho tempo atrás, é que o vivente veio desfrutar. O máximo da tecnologia em comunicação ao qual teve acesso, ao longo de muitos anos, foi o radinho SEMP, a pilha, com seis faixas de onda, mas que estava sempre sintonizado na rádio Sepé. Pela voz companheira dos locutores é que tomava conhecimento, ainda que muitas vezes distorcidas, das novidades da vida. Creio na verdade que era o radinho o único a lhe mostrar, ainda que vagamente, a existência de outro mundo, além daquele, vivido ali no tão conhecido Urubucaru.

            Nascido e criado naquele fundo de campo o homem se confunde com seu meio. Podia descobrir um perdigão de longe, só pelo pio. Pouco importando a altura da macega. Pés descalços, bombacha arremangada, não se abate pelo frio ou calor. Habituado a caçar e pescar, supera brincando, qualquer dos rigores da natureza, tendo apenas a caña como consolo. Estas pessoas adquirem uma personalidade singular. Ao mesmo tempo dura e delicada. Uma mistura de gentileza, educação, curiosidade e grossura.

           Conheci o seu Pedro lá pelo final dos anos 70, mas só tive a oportunidade da convivência em 1983, quando resolvi me dedicar à vida do campo, mesmo sem saber pastar. Meu amigo e compadre João Brezolin, nesta época, possuía uma área de terra naquele rincão do planeta. Lá existiam duas sedes com excelentes residências, uma delas estava meio abandonada. Aproveitei a boa vontade do compadre em me permitir ocupar a linda morada em abandono, para lá me transferi, a fim de experimentar uma vida mais tranquila e natural.

          Minha primeira ideia foi plantar arroz em uma várzea. Cerca de dois hectares e pouco, ladeada pelo riacho Urubucaruzinho. Era assustador olhar o cenário daquilo que deveria ser uma pequena lavoura de arroz no futuro. A vegetação pioneira havia tomado conta de tudo. Entrar naquele lugar parecia impossível, nem as cruzeiras se arriscavam por ali. Era preciso limpar e drenar o terreno, preparar a lavourinha. Mas como?

Meu compadre mesmo deu a ideia.

- Chama o Pedro Castanho!

            Seu Pedro morava perto dali. Dava para ir a pé. Mas como sempre fui pachola, me pilchei a capricho, encilhei o pingo e rumei p’ra casa dele. Em poucos minutos lá estava. O comitê de recepção foi a cachorrada, que cumpriu seu papel numa algazarra ensurdecedora.

            - Oh de casa!

            Gritei com força no pulmão, antes de apear. Atendeu-me a dona Narda, esposa do seu Pedro.

            - Bom dia! - Me cumprimentou com certa curiosidade.

            - Com licença - falei como manda o protocolo.

            - Apeie e vá chegando - respondeu Dona Narda com certa alegria.

            Com as rédeas firmes na mão esquerda estendi a destra, cumprimentando-a com um gesto muito peculiar utilizado por lá. Não era um aperto de mão. Apenas um leve toque com as palmas das mãos abertas. Primeiro mão com mão depois um toque na parte interna do antebraço, próximo ao cotovelo.

            Convidou-me para sentar apontando um banco fixo no terreiro, à sombra do cinamomo. Prontamente entrou no rancho para providenciar o chimarrão.

            Apesar de já não ser tão jovem, Dona Narda era uma mulher ativa, forte e decidida. Possuía, e ainda possui, aquela sinceridade peculiar das pessoas do interior. Não perdia a oportunidade de prosear, ainda que tivesse algum serviço por fazer. De minha parte já estava preparado para uma longa prosa. Para ser sincero eu também gostava de jogar conversa fora. Além do mais, de que serviria o tempo se não fosse para desfrutar estes curtos momentos.

            Chegou com a cuia e chaleira, erva crioula dali mesmo, tomou o primeiro mate, conforme a etiqueta da campanha. Ascendeu um palheiro que trazia guardado na orelha, a moda lápis de bolicheiro; puxou assunto. Conversamos um bom tempo. Na maioria das vezes sobre pessoas conhecidas, ela querendo saber notícias de todo mundo, ao mesmo tempo em que me colocava a par das novidades locais. Custei perguntar pelo seu Pedro, que afinal era o motivo da minha ida até aquele ali.

            Depois de algum tempo de prosa, onde fui interrogado de todas as formas que pudessem satisfazer a curiosidade da Dona Narda, fiquei sabendo que seu Pedro estava trabalhando nas vizinhanças. Deixei recado para que ele passasse lá em minha casa, tomei o mate do estribo, agradeci e voltei. Cheguei em casa no meio da tarde.

            No outro dia bem cedo seu Pedro já estava lá. Pronto para qualquer serviço. O recebi ainda meio sonolento, quando me preparava para a ordenha matinal; que foi feita enquanto a conversa ocorria. Como de hábito logo o chimarrão foi servido; divagamos um pouco em assuntos diversos e o serviço foi empreitado. Naquele mesmo dia o Pedro Castanho (e sua equipe), começou a desbravar a várzea perdida. Primeiro o fogo, depois roçar o que sobrou e finalmente abrir os valos de drenagem. Dava até medo, serviço bruto, perigoso, cansativo, mas acompanhei o trabalho junto com os demais executando uma ou outra tarefa.

            No terceiro dia enquanto os valos de drenagem eram abertos o tempo fechou. Nuvens negras no sudoeste indicavam que uma forte tormenta nos atingiria em breve. Paramos o serviço e nos deslocamos para um aclive na beira do mato, próximo ao topo da coxilha. Ali nos sentamos para observar a tempestade que se aproximava, aliás, já bem próxima. Alguns minutos de silêncio, enquanto a garrafa de cachaça passava de mão em mão. Observávamos calados o movimento das nuvens. Parecia que o vento iria levantar tudo o que encontrasse pela frente. Relâmpagos cortavam o céu na parte frontal da poderosa frente, iluminando a escuridão que se aproximava. Parecia que estávamos deslumbrados naquela silente observação. De repente o Castanho quebra o silêncio!

- Kako! Tu que é um home esclarecido, me explica o que é o raio.

Confesso que travei. Simplesmente não sabia o que responder. Embora eu fosse perito em eletricidade por profissão, conhecesse perfeitamente as leis da física e soubesse de cor e salteado como aquele fenômeno se produzia. Mas como explicar aquilo p’ro Pedro Castanho? Refleti alguns segundos. Pensei... rebusquei na memória palavras que pudessem ser apropriadas e nada! O que dizer para alguém totalmente ignorante das lis da ciência aquilo que para mim era tão elementar?

Arrisquei!

- Seu Pedro! O senhor sabe o que é matéria?

- Claro! Estas bolsas de adubo são de matéria.

Seu Pedro obviamente não me deu uma definição de matéria, mas, fazia referência à matéria plástica da embalagem de adubo a qual o pessoal chama apenas de matéria. Percebi esta dificuldade para o início de minha explanação e corrigi o rumo da prosa.

- Não seu Pedro! Matéria é tudo aquilo que ocupa lugar no espaço. Tudo a nossa volta é matéria, a grama que o senhor pisa, a caña que entorna, o vidro ou o plástico da garrafa, a sua roupa e o ar que respiramos. Tudo aquilo que o senhor pode cheirar, apalpar, pesar ou medir é matéria.

- Ah! Balbuciou ele, fazendo um meneio de cabeça como quem estivesse entendendo tudo.

- Pois bem seu Pedro! Esta matéria de que lhe falo é composta por pedacinhos muito pequeninos, menores que os grãos da areia mais fina do Piratini. Tão pequenos que nem podemos enxergar. Eles formam os tijolos e os alicerces de tudo aquilo que o senhor pode ver, sentir e tocar. Esses pedacinhos tão pequenos de matéria contêm uma coisa chamada “eletricidade”. Obra da natureza! Ideia do criador, que assim fez o mundo!

            Seu Pedro e os outros acompanhavam minhas palavras em profundo silêncio. Perturbado apenas pelo rumor grave dos trovões, que mais pareciam canhões de guerra, cada vez mais próximos. Continuei minha explanação.

- Pois estas pequenas partes da matéria têm nome. Umas que contêm eletricidade negativa são chamadas de elétrons, enquanto outras contêm eletricidade positiva sendo chamadas de prótons. Os elétrons e os prótons se equilibram, para cada próton existe um elétron. Assim como dois homens que puxam uma corda, cada um puxando para um lado. Se os dois tiverem a mesma força eles não saem do lugar, tudo permanece em equilíbrio.

- Aha! Confirmava seu Pedro com um novo meneio de cabeça.

            Nestas alturas da prosa, embora eu pouco tivesse dito, já estava me sentindo um tanto patético, meio idiota, achando que não iria ter sucesso com a narrativa. Mas era preciso continuar!

- Os elétrons são muito pequenos embora tenham muita força, eles podem facilmente ser arrancados da estrutura da matéria. Do mesmo jeito que o senhor arranca um pedaço de barro do tijolo que ainda não secou, apenas com uma leve pressão do dedo, ou com um cutucão da ponta da faca.

- Uma nuvem seu Pedro; é formada de matéria também. Exatamente igual à fumaça que sai do bico da chaleira quando a água ferve. A esta fumaça se dá o nome de vapor d’água. O vapor emana dos rios, lagos, mares, das florestas quando aquecidos pelo sol. É ele que forma a nuvem que nós estamos vendo se aproximar.

            Neste momento o vento já começava a nos açoitar e o dia quase virando noite. A tormenta seguia seu rumo, bem em nossa direção, mas ninguém dali arredou o pé. A garrafa de cachaça secou e todos queriam continuar escutando minha explicação. Não tinha como escapar. O jeito era continuar, enrolado ou não!

- Pois o vento arranca da nuvem estes pedacinhos de tijolos, chamados de elétrons. Quando um elétron é retirado sobra na nuvem um próton, aquele que tem carga positiva. O vento na realidade arranca bilhões de elétrons, deixando sem parceiros bilhões de prótons. Isto faz com que a eletricidade se manifeste, tentando juntar de novo estes pedaços exercendo uma força descomunal.

            Seu Pedro coçava a cabeça, mas continuava fazendo gestos que estava compreendendo. Pelo jeito, o único perdido na prosa era eu. Sentia-me cada vez mais atrapalhado para dar a devida explicação. Continuei apesar de o tempo estar cada vez mais feio, já com a chuva molhando os arredores da várzea.

            - Quando estes pedacinhos de matéria se separam, dizemos que a nuvem está carregada. Na verdade, ela está carregada de eletricidade.

            A atenção de todos, principalmente do seu Pedro era algo assustador.

  - quando esta nuvem carregada passa perto da terra ou de outra nuvem existe uma forte atração. É a natureza tentando reunir novamente os pedacinhos que foram separados. Então numa fração de segundos o ar se torna um fio condutor conduzindo os elétrons para a nuvem, para que eles reencontrem seus parceiros e tudo possa ficar equilibrado outra vez. É uma descarga que provoca um brilho descomunal que nós chamamos de raio ou corisco, provocando também aquele tremendo estrondo, chamado de trovão.

Narrativa concluída. Todos me olhavam em silêncio, como se esperassem mais alguma coisa, talvez mais algumas palavras. Eu preocupado, pois não conseguia, talvez pelo excesso de conhecimento, simplificar minha explicação. Seu Pedro olhou profundamente para o horizonte, muito próximo por conta da tempestade, parecendo estar matutando sobre o que ouviu, enquanto observava aquele maravilhoso brilho dos relâmpagos, seguido do som dos poderosos canhões. Tapeou o chapéu na testa, demonstrando uma expressão incomum no rosto, como se uma alegria incontida houvesse acometido o espírito dele.

             - A gente é burro mesmo!  Uma coisa tão simples e eu não sabia!

É verdade seu Pedro! A vida é simples mesmo, nós é que complicamos! Aprendi essa lição. Nem tudo precisa ser esclarecido ao pé da letra. A vida precisa, primeiro, ser sentida e depois compreendida. Ilusão pensar que a expansão do conhecimento por si só poderá melhorar nossa existência, se não tivermos os nossos sentimentos receptivos para a essência das coisas.





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