Um tal Pedro Castanho
Para
não dar morto por testemunha, seu Pedro está lá, bem vivo e bem forte. Faz
alguns anos que não o vejo, mas sempre recebo notícias vindas daquele rincão
dizendo que ele está muito bem; com seus oitenta e tantos janeiros. Confesso
que sou um admirador do seu Pedro. Não porque ele tenha feito algo grandioso.
Ou ao menos tivesse um dom qualquer, destes que se traz do berço, tornando
pessoas comuns em celebridades. Ao contrário! O índio foi desprovido de tudo.
Nem plata nem pessuelos; sem cultura e sem berço. Mas nem ele mesmo imagina o
quanto é sábio em sua ignorância; o quanto ele poderia ensinar aos mais altos
expoentes de academias.
Pois o Índio velho jamais teve conhecimento das letras. Dos confortos da
vida moderna, tal como a luz elétrica, somente agora, pouquinho tempo atrás, é
que o vivente veio desfrutar. O máximo da tecnologia em comunicação ao qual
teve acesso, ao longo de muitos anos, foi o radinho SEMP, a pilha, com seis
faixas de onda, mas que estava sempre sintonizado na rádio Sepé. Pela voz
companheira dos locutores é que tomava conhecimento, ainda que muitas vezes
distorcidas, das novidades da vida. Creio na verdade que era o radinho o único
a lhe mostrar, ainda que vagamente, a existência de outro mundo, além daquele,
vivido ali no tão conhecido Urubucaru.
Nascido e criado naquele fundo de campo o homem se confunde com seu
meio. Podia descobrir um perdigão de longe, só pelo pio. Pouco importando a
altura da macega. Pés descalços, bombacha arremangada, não se abate pelo frio
ou calor. Habituado a caçar e pescar, supera brincando, qualquer dos rigores da
natureza, tendo apenas a caña como consolo. Estas pessoas adquirem uma
personalidade singular. Ao mesmo tempo dura e delicada. Uma mistura de
gentileza, educação, curiosidade e grossura.
Conheci o seu Pedro lá pelo final dos anos 70, mas só tive a
oportunidade da convivência em 1983, quando resolvi me dedicar à vida do campo,
mesmo sem saber pastar. Meu amigo e compadre João Brezolin, nesta época,
possuía uma área de terra naquele rincão do planeta. Lá existiam duas sedes com
excelentes residências, uma delas estava meio abandonada. Aproveitei a boa
vontade do compadre em me permitir ocupar a linda morada em abandono, para lá
me transferi, a fim de experimentar uma vida mais tranquila e natural.
Minha primeira ideia foi plantar arroz em uma várzea. Cerca de dois
hectares e pouco, ladeada pelo riacho Urubucaruzinho. Era assustador olhar o
cenário daquilo que deveria ser uma pequena lavoura de arroz no futuro. A
vegetação pioneira havia tomado conta de tudo. Entrar naquele lugar parecia
impossível, nem as cruzeiras se arriscavam por ali. Era preciso limpar e drenar
o terreno, preparar a lavourinha. Mas como?
Meu compadre mesmo deu a ideia.
- Chama o Pedro Castanho!
Seu Pedro morava perto dali. Dava para ir a pé. Mas como sempre fui pachola,
me pilchei a capricho, encilhei o pingo e rumei p’ra casa dele. Em poucos
minutos lá estava. O comitê de recepção foi a cachorrada, que cumpriu seu papel
numa algazarra ensurdecedora.
- Oh de casa!
Gritei com força no pulmão, antes de apear. Atendeu-me a dona Narda,
esposa do seu Pedro.
- Bom dia! - Me cumprimentou com certa curiosidade.
- Com licença - falei como manda o protocolo.
- Apeie e vá chegando - respondeu Dona Narda com certa alegria.
Com as rédeas firmes na mão esquerda estendi a destra, cumprimentando-a
com um gesto muito peculiar utilizado por lá. Não era um aperto de mão. Apenas
um leve toque com as palmas das mãos abertas. Primeiro mão com mão depois um
toque na parte interna do antebraço, próximo ao cotovelo.
Convidou-me para sentar apontando um banco fixo no terreiro, à sombra do
cinamomo. Prontamente entrou no rancho para providenciar o chimarrão.
Apesar de já não ser tão jovem, Dona Narda era uma mulher ativa, forte e
decidida. Possuía, e ainda possui, aquela sinceridade peculiar das pessoas do
interior. Não perdia a oportunidade de prosear, ainda que tivesse algum serviço
por fazer. De minha parte já estava preparado para uma longa prosa. Para ser
sincero eu também gostava de jogar conversa fora. Além do mais, de que serviria
o tempo se não fosse para desfrutar estes curtos momentos.
Chegou com a cuia e chaleira, erva crioula dali mesmo, tomou o primeiro
mate, conforme a etiqueta da campanha. Ascendeu um palheiro que trazia guardado
na orelha, a moda lápis de bolicheiro; puxou assunto. Conversamos um bom tempo.
Na maioria das vezes sobre pessoas conhecidas, ela querendo saber notícias de
todo mundo, ao mesmo tempo em que me colocava a par das novidades locais.
Custei perguntar pelo seu Pedro, que afinal era o motivo da minha ida até
aquele ali.
Depois de algum tempo de prosa, onde fui interrogado de todas as formas
que pudessem satisfazer a curiosidade da Dona Narda, fiquei sabendo que seu
Pedro estava trabalhando nas vizinhanças. Deixei recado para que ele passasse
lá em minha casa, tomei o mate do estribo, agradeci e voltei. Cheguei em casa no
meio da tarde.
No outro dia bem cedo seu Pedro já estava lá. Pronto para qualquer
serviço. O recebi ainda meio sonolento, quando me preparava para a ordenha
matinal; que foi feita enquanto a conversa ocorria. Como de hábito logo o
chimarrão foi servido; divagamos um pouco em assuntos diversos e o serviço foi
empreitado. Naquele mesmo dia o Pedro Castanho (e sua equipe), começou a
desbravar a várzea perdida. Primeiro o fogo, depois roçar o que sobrou e
finalmente abrir os valos de drenagem. Dava até medo, serviço bruto, perigoso,
cansativo, mas acompanhei o trabalho junto com os demais executando uma ou
outra tarefa.
No terceiro dia enquanto os valos de drenagem eram abertos o tempo
fechou. Nuvens negras no sudoeste indicavam que uma forte tormenta nos
atingiria em breve. Paramos o serviço e nos deslocamos para um aclive na beira
do mato, próximo ao topo da coxilha. Ali nos sentamos para observar a
tempestade que se aproximava, aliás, já bem próxima. Alguns minutos de
silêncio, enquanto a garrafa de cachaça passava de mão em mão. Observávamos
calados o movimento das nuvens. Parecia que o vento iria levantar tudo o que
encontrasse pela frente. Relâmpagos cortavam o céu na parte frontal da poderosa
frente, iluminando a escuridão que se aproximava. Parecia que estávamos
deslumbrados naquela silente observação. De repente o Castanho quebra o
silêncio!
- Kako! Tu que é um home esclarecido, me
explica o que é o raio.
Confesso que travei. Simplesmente não sabia o
que responder. Embora eu fosse perito em eletricidade por profissão, conhecesse
perfeitamente as leis da física e soubesse de cor e salteado como aquele
fenômeno se produzia. Mas como explicar aquilo p’ro Pedro Castanho? Refleti
alguns segundos. Pensei... rebusquei na memória palavras que pudessem ser
apropriadas e nada! O que dizer para alguém totalmente ignorante das lis da
ciência aquilo que para mim era tão elementar?
Arrisquei!
- Seu Pedro! O senhor sabe o que é matéria?
- Claro! Estas bolsas de adubo são de matéria.
Seu Pedro obviamente
não me deu uma definição de matéria, mas, fazia referência à matéria plástica
da embalagem de adubo a qual o pessoal chama apenas de matéria. Percebi esta
dificuldade para o início de minha explanação e corrigi o rumo da prosa.
- Não seu Pedro! Matéria é tudo aquilo que
ocupa lugar no espaço. Tudo a nossa volta é matéria, a grama que o senhor pisa,
a caña que entorna, o vidro ou o plástico da garrafa, a sua roupa e o ar que
respiramos. Tudo aquilo que o senhor pode cheirar, apalpar, pesar ou medir é
matéria.
- Ah! Balbuciou ele, fazendo um meneio de
cabeça como quem estivesse entendendo tudo.
- Pois bem seu Pedro! Esta matéria de que lhe
falo é composta por pedacinhos muito pequeninos, menores que os grãos da areia
mais fina do Piratini. Tão pequenos que nem podemos enxergar. Eles formam os
tijolos e os alicerces de tudo aquilo que o senhor pode ver, sentir e tocar. Esses
pedacinhos tão pequenos de matéria contêm uma coisa chamada “eletricidade”.
Obra da natureza! Ideia do criador, que assim fez o mundo!
Seu Pedro e os outros acompanhavam minhas palavras em profundo silêncio.
Perturbado apenas pelo rumor grave dos trovões, que mais pareciam canhões de
guerra, cada vez mais próximos. Continuei minha explanação.
- Pois estas pequenas partes da matéria têm
nome. Umas que contêm eletricidade negativa são chamadas de elétrons, enquanto
outras contêm eletricidade positiva sendo chamadas de prótons. Os elétrons e os
prótons se equilibram, para cada próton existe um elétron. Assim como dois
homens que puxam uma corda, cada um puxando para um lado. Se os dois tiverem a
mesma força eles não saem do lugar, tudo permanece em equilíbrio.
- Aha! Confirmava seu Pedro com um novo meneio
de cabeça.
Nestas alturas da prosa, embora eu pouco tivesse dito, já estava me sentindo
um tanto patético, meio idiota, achando que não iria ter sucesso com a
narrativa. Mas era preciso continuar!
- Os elétrons são muito pequenos embora tenham
muita força, eles podem facilmente ser arrancados da estrutura da matéria. Do
mesmo jeito que o senhor arranca um pedaço de barro do tijolo que ainda não
secou, apenas com uma leve pressão do dedo, ou com um cutucão da ponta da faca.
- Uma nuvem seu Pedro; é formada de matéria
também. Exatamente igual à fumaça que sai do bico da chaleira quando a água
ferve. A esta fumaça se dá o nome de vapor d’água. O vapor emana dos rios,
lagos, mares, das florestas quando aquecidos pelo sol. É ele que forma a nuvem
que nós estamos vendo se aproximar.
Neste momento o vento já começava a nos açoitar e o dia quase virando
noite. A tormenta seguia seu rumo, bem em nossa direção, mas ninguém dali
arredou o pé. A garrafa de cachaça secou e todos queriam continuar escutando
minha explicação. Não tinha como escapar. O jeito era continuar, enrolado ou
não!
- Pois o vento arranca da nuvem estes
pedacinhos de tijolos, chamados de elétrons. Quando um elétron é retirado sobra
na nuvem um próton, aquele que tem carga positiva. O vento na realidade arranca
bilhões de elétrons, deixando sem parceiros bilhões de prótons. Isto faz com
que a eletricidade se manifeste, tentando juntar de novo estes pedaços
exercendo uma força descomunal.
Seu Pedro coçava a cabeça, mas continuava fazendo gestos que estava
compreendendo. Pelo jeito, o único perdido na prosa era eu. Sentia-me cada vez
mais atrapalhado para dar a devida explicação. Continuei apesar de o tempo
estar cada vez mais feio, já com a chuva molhando os arredores da várzea.
- Quando estes pedacinhos de matéria se separam, dizemos que a nuvem
está carregada. Na verdade, ela está carregada de eletricidade.
A atenção de todos, principalmente do seu Pedro era algo assustador.
- quando esta nuvem carregada passa perto da
terra ou de outra nuvem existe uma forte atração. É a natureza tentando reunir
novamente os pedacinhos que foram separados. Então numa fração de segundos o ar
se torna um fio condutor conduzindo os elétrons para a nuvem, para que eles
reencontrem seus parceiros e tudo possa ficar equilibrado outra vez. É uma
descarga que provoca um brilho descomunal que nós chamamos de raio ou corisco,
provocando também aquele tremendo estrondo, chamado de trovão.
Narrativa concluída. Todos
me olhavam em silêncio, como se esperassem mais alguma coisa, talvez mais
algumas palavras. Eu preocupado, pois não conseguia, talvez pelo excesso de
conhecimento, simplificar minha explicação. Seu Pedro olhou profundamente para
o horizonte, muito próximo por conta da tempestade, parecendo estar matutando sobre o
que ouviu, enquanto observava aquele maravilhoso brilho dos relâmpagos, seguido
do som dos poderosos canhões. Tapeou o chapéu na testa, demonstrando uma
expressão incomum no rosto, como se uma alegria incontida houvesse acometido o
espírito dele.
- A gente é burro mesmo! Uma
coisa tão simples e eu não sabia!
É verdade seu Pedro!
A vida é simples mesmo, nós é que complicamos! Aprendi essa lição. Nem tudo
precisa ser esclarecido ao pé da letra. A vida precisa, primeiro, ser sentida e
depois compreendida. Ilusão pensar que a expansão do conhecimento por si só
poderá melhorar nossa existência, se não tivermos os nossos sentimentos
receptivos para a essência das coisas.
Comentários
Postar um comentário
Ajude no aprimoramento deste blog. Inscreva-se e deixe aqui seus comentários e sugestões!