A morte de Apoema. Um Conto Missioneiro - Capítulo do livro: De volta à Missão.
Os sete povos da missões; sempre exerceram grande influência sobre o meu imaginário. Mais de trinta anos convivi naquela região. Morei nas margens do Rio Urubucaru, entre as ruínas de São João Batista e São Miguel Arcanjo; de quebra, São Lourenço Mártir ficava ali pertinho também. Muitas vezes circulei por estas ruinas, estendendo a minha busca até São Nicolau; São Francisco de Borja; São Luiz Gonzaga e Santo Ângelo Custódio (ou apenas Santo Ângelo - onde estabeleci residência).
O destino me afastou das Missões; mas na lembrança ainda circulo por aquelas ruinas, ouço os sinos do passado e percebo o burburinho agitado das milhares de almas, que deram vida ao local. Por isso me propus a escrever um romance, que terá por nome: "De volta à Missão"
A correria da vida tem me dificultado tempo para escrever, mas deixo para os amigos uma palhinha do que será o livro. Uma mistura de realidade e ficção; de materialismo e espiritualidade; de amor e ódio! Espero que a leitura agrade aos amigos!
Ruinas de São Miguel Arcanjo - Foto Kako Aransegui
Apoema permanecia calmo; apesar do ferimento grave; que a baioneta do oficial espanhol, lhe impusera. Seus pensamentos vibravam, naquela espécie de delirium tremes! Perdera muito sangue; o espírito não concatenava aquele momento. Mal conseguia mover o corpo, mas a mente trabalhava freneticamente, suas mãos tremiam. Lutava ferozmente ao lado de Sepé Tiaraju. Naquele entrevero medonho, não percebeu a chegada do oficial espanhol que lhe desferiu o golpe mortal. Tombou do cavalo já impotente, mas visualizou ainda Sepé Tiaraju lutando bravamente e sendo atingido por uma lança, caindo na margem do rio cujas águas se tornaram escarlates; viu no olhar do grande líder, a expressão de dor e ódio, ao erguer-se do chão soberanamente, logo após o tombo... quando Sepé percebeu a presença do oficial português que lhe apontava uma garrucha; já era tarde... então; um sapucai ecoou pelas coxilhas... antes que o tiro à queima roupa fosse desferido, todos os sons foram abafados, tudo ficou em silêncio para ouvir a voz de Sepé Tiaraju; na última frase por ele pronunciada em forma de grito:
- Co
Yvy Oguereco Yara!
Aquelas palavras penetraram fundo nos ouvidos de Apoema que;
inutilmente, procurava Kauany. Por onde sua amada andaria? Precisava
desesperadamente dela... das carícias dela... do amparo! no seu desespero;
Apoema clamava aos deuses que conhecia, para que eles protegessem aquela que
foi sempre a razão dele viver!
Aquela fúria incontida, dominou todos os espíritos humanos; consequência de uma
guerra que ele não podia compreender. Como poderia um Deus de amor; promover
lutas tão violentas? tanto ódio e maldade... Apoema não sabia como enfrentar
aqueles inimigos... afinal, até pouco tempo antes, ele os julgava amigos e
protetores. Os missionários; principalmente o Padre Antônio Sepp; com quem
Apoema e Kauany foram criados, haviam ensinado a eles o respeito e a gratidão
que deviam à coroa espanhola. O povo Guarany estava sob a tutela e misericórdia
do monarca da Espanha borbônica!
Quantas
histórias foram contadas; sobre um passado não tão distante; quando o inimigo
eram os bandeirantes portugueses de Raposo Tavares. O povo Guarany lutou, em
nome do rei de Espanha, a fim de combater aquela praga destruidora imposta pelas bandeiras; que escravizava
ou matava seus ancestrais. Entretanto; aquele ferimento, que não parava de
sangrar, foi desferido por um soldado, que deveria ser amigo! Apoema delirava...
sem entender o embate! Tanto se dedicou ao rei da Espanha e aos missionários...
tanto peleou pela terra sem males! os portugueses, representados pelos
bandeirantes paulistas, eram os inimigos que ele conhecia! O olhar de Apoema
vagava no horizonte daquele cenário de guerra. Centenas de irmãos jaziam junto
com ele; brutalmente feridos... vislumbrava naquele horizonte; que se ofuscava
pela fumaça dos mosquetes e pela poeira da contenda. Observava imagens confusas…
Soldados em uniformes portugueses e soldados com uniformes espanhóis; golpeavam
sem compaixão, com baionetas; coronhas e lanças, seus irmãos de pele bronzeada.
Os gritos e gemidos que se escutava, misturavam-se com o tropel de homens e
animais; entrecortados pelos estampidos dos arcabuzes. Não queria acreditar nas
imagens turvas; que seus olhos moribundos, ainda podiam discernir. Como era
possível; amigos e inimigos, terem se unido naquela causa maligna?
Apoema
testemunhou o momento em que o cavalo; montado por Sepé Tiaraju, rodou às
margens do arroio, em meio aquela emboscada brutal. Ainda escutava a voz do
grande líder Guarani, ecoando em seus ouvidos! Apesar de confuso o som daquela
voz predominava entre gemidos, murmúrios e tropéis...
- Co
Yvy Oguereco Yara
Aquele
grito, seguido daquelas palavras, ecoaram no cenário de guerra. Tudo silenciou
naquele momento... O general português; incrédulo, reconheceu a bravura do seu
oponente. Um breve arrependimento tumultuou o pensamento do oficial; mas a
guerra não dá espaço para a compaixão, muito menos para reflexões! O general
esporeou seu cavalo e continuou a carnificina.
Apoema
assistia tudo com incredulidade. Não sabia se era delírio ou realidade, o que
seus olhos vislumbravam.
-
Kauany; Kauany; Kauany...
Clamava o
nome da amada!
Não ouvia
uma resposta!
Queria se movimentar; olhar ao redor, mas não conseguia. Em cada tentativa, uma dor aguda o abalava. Já não tinha forças físicas. Num rápido e frenético cenário mental, a história de Apoema, se desenrolou como um pergaminho diante dele; antes que o último sopro de vida se esvaísse separando; definitivamente, o corpo e a alma! Lembrou do amor adolescente, que os uniu; de forma permanente, para o todo e sempre. Um amor que deveria perpetuar-se por toda a eternidade. Se prolongaria por muitas vidas. Agora; prestes a deixar aquele corpo, que tanto encontrou os prazeres da vida quando; nos momentos de intimidade e paz, desfrutou tantos carinhos, nos braços de Kauany. Lembrou de todos os beijos, de todos os prazeres da carne; que experimentou desde a juventude; que se prolongaram por uma vida inteira, ao lado de sua amada. Na mente de Apoema, as lembranças flutuavam, como plumas esparramadas ao vento!
- Kauany!
Onde estás minha amada?
O desespero
tomava conta da alma Apoema! Não pelo ferimento que lhe abatia o corpo, mas
pela ausência, mil vezes mais dolorosa de Kauany. Queria vê-la, apenas uma vez
mais! Não compreendia porque Deus não lhe permitia vê-la... Então; Renegou a
existência de Deus naquele momento... queria apenas um vislumbre, daqueles
olhos negros de Kauany; dos lábios com sabor de pitanga e do corpo esbelto e
bronzeado. Desejava-a; ardentemente... queria ouvir palavras daquela boca; de
onde emanaram tantas juras de amor eterno!
-
Kauany! Onde estás meu amor?
Lembrou do
início... quando Ele e Kauany eram ainda crianças... quando percorriam aquelas
coxilhas, ao redor da magnífica igreja, que dominava aquele plano alto da
redução de São Miguel Arcanjo. Os longos cabelos negros de ambos, esvoaçavam
naquelas correrias; vestidos em branco algodão, que contrastava angelicalmente
com o tom de suas peles cor de bronze! Lembrou das conversas e na apreensão dos
mais velhos, quando o Padre Antônio Sepp comunicou que parte daquela comunidade,
migraria para uma nova redução. A de São João Batista; que já vinha sendo construída
fazia algum tempo. Agora estava pronta para abrigar aquele excesso de almas que
povoava a mais linda e imponente das reduções do Tape. Os Guaranis, sempre
amorosos e apegados, aos parentes e amigos, ficaram apreensivos com a mudança.
Embora São João Batista, ficasse ao alcance, em meio dia de caminhada, a comunidade
sofreu uma espécie de comoção. Era muito difícil para eles; aquela separação,
apesar da consciência coletiva, que São Miguel Arcanjo não conseguia mais
abrigar tanta gente.
As imagens
do passado, ao lado de Kauany, tomavam conta dos pensamentos de Apoema. Eram
imagens aceleradas pela emoção. Como se aquelas emoções revividas, desse ao
coração moribundo de Apoema uma sobrevida, um fio de esperança. Tinha por ela tanto
amor, que esquecera; por um breve instante, de seus próprios filhos. Frutos do
amor mais puro que a vida lhe propiciou.
Onde
estariam eles naquele momento?
Será que
conseguiram fugir daquela devastação?
Em
pensamentos se esvaíram as forças de Apoema... não havia mais sangue em suas
veias; os olhos dele estavam ofuscados. Olhou ainda, pela última vez o cadáver
de Sepé Tiaraju... vislumbrou ainda um grupo de soldados derramarem pólvora
sobre o corpo do guerreiro abatido. O brilho da pólvora; queimando o corpo do
seu líder, como um fogo do inferno que consome até as entranhas; em seguida deceparam lhe a cabeça; para que fosse exibida como troféu!
Apoema não
era jovem; mas possuía um corpo esbelto e saudável que mascarava a idade dele. Seu
espírito; ao abandonar o corpo moribundo pronunciou a última palavra que ecoou
em agonia:
- Kauaaanyyyy!
A morte não aplacou sua ansiedade! Em
seu último suspiro, Apoema não pode nem mesmo clamar pela ajuda do céu! Alguns
disseram ter visto uma espécie de luz; subindo até desaparecer nas alturas,
como se fosse um raio vívido. A morte não encerrou aquela jornada; aquele raio
misterioso promoveu apenas a troca de cenário. Para onde foi o guerreiro
ninguém sabe! Diz a lenda que ele continua patrulhando as ruínas da antiga missão de
São João Batista, em busca de Kauany e seus filhos.
*Co Yvy Oguereco Yara! - Significa: "Esta terra tem Dono"
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