Naufragados e caminho Peabiru. O que uma coisa tem a ver com a outra?

    A história é feita de narrativas! Tudo aquilo que estudamos nos livros de história, ou daquilo que foi pesquisado por curiosidade, são fatos narrados sob perspectivas individuais de quem escreveu ou falou a respeito do ocorrido. A verdade está confinada e limitada ao ponto de vista do historiador.  O contexto histórico é portanto questionável, mesmo que pareça verdadeiro. Não quero com minhas palavras trazer desalento aos pesquisadores; tão pouco pretendo desmerecer a narrativa de quem quer que seja. Entretanto tenho por obrigação para comigo mesmo, questionar tais narrativas, a fim de desvendar a verdade que está envolta em muitos véus. Observem que a história possui certo dinamismo e pode ter o contexto alterado. Na medida em que o conhecimento aumenta, novas informações podem alterar drasticamente o que hoje acreditamos ser uma verdade consumada.

    Nesse mundo de trilhas e aventuras ao qual me dedico, o que mais se houve são histórias. Ou seriam estórias? Seja como for, me parece uma bela oportunidade de dissertar sobre o assunto. Afinal estamos na Ilha da Magia e as narrativas, falsas ou verdadeiras, fazem parte do cotidiano. Mas o que Naufragados tem a ver com isso? E o que tem a ver o Caminho Peabiru com Naufragados? 

    É o que vou contar agora! Preparem um cafezinho, ou chá; ajeite a iluminação da cabeceira; senta porque lá vem aventuras e histórias!                                                                 Praia de Naufragados

    Sempre que percorro os recantos deste maravilhoso "pedacinho de terra no meio do mar", gosto de ouvir histórias do povo nativo. Os causos ou contos são recheados de imaginação e folclore. Fazem parte da cultura ilhoa. Há também aquelas mentiras, as vezes bem contadas, que acabam impressionando. A imaginação de quem conta estórias também é relevante para a cultura local. Sempre foi assim e sempre será! Confesso a vocês que isso realmente me encanta. Gosto de ouvir e contar essas fantasias e crendices. Entretanto a verdade precisa prevalecer, a fim de que as invencionices criativas não moldem condutas errôneas.

                              Uma pedra interessante fotografada na Ponta do Frade em Naufragados

    Antes de relatar sobre naufragados, vou comentar sobre o caminho de Peabiru. Ao contrário do que muitos pensam, não é uma trilha Inca; embora muita coisa precise ser pesquisada a respeito.. O povo Guarani sempre teve a crença numa terra sem males, portanto, Peabiru era uma trilha espiritual que conduzia ao paraíso mitológico daquele povo. Acabou se tornando um caminho para alcançar os tesouros do continente depois da chegada dos europeus que, em busca de acessos ao interior da América do Sul, utilizaram a trilha para alcançar riquezas que se encontravam nos domínios do império Inca. 
    O caminho era uma estrada primitiva, porém muito bem ordenada rumo ao desconhecido. Possuía oito palmos de largura (cerca de 1.5 m) e um rebaixamento de 40 centímetros. Alguns dizem que o percurso era coberto por uma espécie de gramínea que não permitia que arbustos, ervas daninhas e árvores crescessem em seu curso, evitava também a erosão. O Caminho propiciava uma troca cultural e mercantil muito rica entre os povos. Além disso, atendia à necessidade desses povos em terem uma forma de comunicação.
   
    O significado do nome é controverso entre os historiadores; alguns estudiosos sustentam que tem origem na língua indígena Tupi-Guarani: "Peabeyú" - Pe = Caminho; Abe = Antigo; Yú = Ida e volta. Outros sustentam que o nome significa "Caminho do gramado amassado" - Pe = Caminho; Abiru = Gramado amassado. Traduções como "Caminho Batido"; "Caminho pisado"; "Caminho rumo ao sertão"; também são utilizados.
    Peabiru é o nome de uma cidade do Paraná, cuja fundação remonta ao início do século XX, o nome foi adotado justamente pela proximidade com esta antiga trilha. Possui uma área é de 469,495 km² representando 0,1773 % do estado, 0,0627 % da região e 0,0042 % de todo o território brasileiro. Localiza-se a uma latitude 23°58'48" sul e longitude 51°49'04" oeste, estando a uma altitude de 495 metros acima do nível do mar, no terceiro planalto paranaense. Sua população estimada é de cerca de quinze mil habitantes (consultar senso).
    O caminho de Peabiru se estendia por cerca de 4 mil km, passando por quatro países da América Latina; iniciando em São Vicente, chegando no Oceano pacífico depois de cruzar a Cordilheira do Andes nos domínios do império inca no Peru. Atravessava os Rios Paraná, Tibagi, Ivaí e Piquiri; por onde passou a expedição do capitão mor Afonso Botelho de San Payo e Souza em 1769. Entretanto existiam caminhos secundários que chegam na trilha principal a partir de várias direções. Como se fossem afluentes de um rio. Nesta síntese histórica referente ao caminho de Peabiru podemos notar que 'Naufragados" situa-se bem longe da trilha principal. Então qual a razão de tantas histórias ligarem a região sul da Ilha de Santa Catarina e o município de Palhoça ao caminho de Peabiru?
    Vamos voltar um pouco na história mais recente da nossa bela Ilha de Santa Catarina, para que possamos compreender como essa região ficou impregnada de mitos e lendas sobre o tal caminho. No final do século XV e no início do século XVI, portugueses e castelhanos lançaram aos mares diversas expedições. Com a descoberta do novo mundo, por Cristóvão Colombo, em 1492 surgiram alguns conflitos, principalmente sobre o domínio das novas terras banhadas pelo Atlântico. A fim de resolver os tais conflitos surgidos com a descoberta da América; em 7 de julho de 1494, a coroa de Castela (Espanha) e a coroa de Portugal assinaram um tratado que dividia o mundo ao meio. O meridiano que passava na vila de Tordesilhas seria a linha divisória das conquistas. Tudo o que fosse descoberto ao leste da linha ficaria sob o domínio de Portugal, para oeste pertenceria a Espanha.
    Com o tratado de Tordesilhas grande parte da América do Sul ficou sob domínio espanhol, sendo que apenas uma pequena parte do que, hoje, é território brasileiro pertencia a Portugal. Inclusive a nossa Ilha de Santa Catarina. Mas o tratado de Tordesilhas não evitou conflitos. Os europeus sabiam que o Novo mundo deveria ser uma enorme massa continental; que provavelmente existiria uma passagem para o outro lado, num oceano que viria a se chamar "Pacífico" (Não tão pacífico assim). Portugueses e espanhóis se aventuraram enviando expedições do norte ao sul do oceano atlântico a fim de descobrir a tal passagem. 

    A ligação de Naufragados com o caminho de Peabiru inicia em 1524, mas para entender o fato histórico é preciso voltar um pouco mais no tempo, na descoberta do Rio da Prata. Preciso fazer uma pequena pausa antes de continuar essa história, pois os próprios historiadores contam-na de formas diversas.  Vou adotar nesta postagem a narrativa de Eduardo Bueno, porque considero ele um dos mais importantes historiadores da atualidade. Apesar da irreverência e do jeitão meio maluco, ele inegavelmente detém enorme conhecimento da história do Brasil. Então, vamos aos fatos, sob a perspectiva de Eduardo Bueno. Quero salientar também, que não estou desmerecendo outros escritores. Lembrando ainda, que  o foco da minha narrativa não é o caminho de Peabiru em si, desejo mostrar como Naufragados e aquela região continental, hoje município de Palhoça, se conectou ao caminho através da história.
        Em 1514 os portugueses enviaram uma expedição para tentar descobrir onde seria o final daquela enorme massa continental. Chegaram onde hoje é Punta del Este  (Uruguai), depois de navegarem a terrível costa que vai de Laguna (SC) até a Foz do Prata. Esta é a maior costa retilínea do mundo, com quase setecentos km sem nenhuma baía, enseada ou porto natural. Quando se depararam com aquela imensa foz pensaram se tratar de um estreito; após navegarem por aquelas águas descobriram que se tratava de um rio. Essa expedição portuguesa de 1514 era composta por duas naus, comandadas por Estevão Fróes e João de Lisboa, mantiveram contato com nativos que lhes venderam um machado de prata; contaram uma história que aquela ferramenta provinha de um povo serrano que vivia muito distante dali, num lugar repleto de ouro e prata. O machado foi entregue ao rei Dom Manuel, o venturoso. O rio da Prata teria sido batizado com esse nome por conta daquele machado e das histórias que ouviram.
                                      Rio da Prata e sua foz no Oceano Atlântico

        Naquela época já existiam as redes de espionagem e o fato acabou repercutindo na Espanha, pois o interesse do ser humano pelo ouro e pela prata sempre foi muito grande. Os espanhóis, sabendo da investida portuguesa naquela região, que pelo tratado de Tordesilhas pertenceria à coroa espanhola, resolveu então enviar uma expedição que partiu de Cádiz em 8 de outubro de 1515, para investigar aquela história. Em fevereiro de 1516, comandados por Juan Diaz de Soliz, três caravelas chegaram em Punta Del Este. Este navegador de nome espanhol, era na realidade João Dias de Sólis, português que havia fugido de Lisboa por ter assassinado a esposa dele; sorrateiramente fugiu para a Espanha adotando nova cidadania.  A expedição adentrou o Rio da Prata. Nas imediações da ilha Martin Garcia eles avistaram muitos nativos na margem do rio, que gesticulavam e gritavam enquanto acompanhavam a movimentação das naus. Então Soliz resolveu abordar aquele povo. Colocou em um bote oito marinheiros e, junto com eles, se deslocou para a margem a fim tentar conversar com aquele povo, achando que obteria informações mais precisas do que aquelas fornecidas para a expedição portuguesa pouco mais de um ano antes. Ocorreu que quando chegaram na margem foram cercados e mortos pelos nativos, que esquartejaram os corpos e devoraram aquela pequena guarnição. A tripulação que havia permanecido nas caravelas foi testemunha ocular daquele barbarismo. Resolveram então voltar. Depois da foz do rio tomaram rumo do norte, sendo que uma das caravelas ficou para trás. quando essa nau retardatária chegou na região onde fica a praia hoje denominada de Pinheira, manobrou  para adentrar na baía sul e acabou naufragando devido as condições do local. Dezessete marinheiros sobreviveram (não se sabe exatamente o número). Esses sobreviventes se abrigaram na região hoje denominada Naufragados. Onze deles acabariam sendo presos logo depois por outra expedição de 1516 comandada por Cristóvão Jacques. Os outros seis (ou sete), ficaram por ali  vivendo num lugar por eles denominado de Porto dos Patos, ali por onde hoje é a Enseada do Brito. Aqui é preciso novamente fazer uma pausa da narrativa. Conforme alguns mapas antigos a Ilha de Santa Catarina, naqueles tempos, era conhecida como Ilha dos Patos. Os índios Carijós que viviam por aqui, se adornavam com penas e foram chamados de "Patos". O nome atual Ilha de Santa Catarina foi dado por Sebastião Caboto em 1526.
       Barra sul, Ponta do Papagaio, Ilha da Fortaleza Nsa. Sra. da Conceição de Araçatuba

                Estes seis ou sete sobreviventes, acabaram convivendo com os carijós juntando-se com mulheres indígenas e com elas tiveram filhos. Entre esses sobreviventes estava Aleixo Garcia. Por lá ouviram as mesmas histórias que haviam sido contadas aos portugueses, pelos índios Charruas, sobre o tal povo serrano, muito rico que vivia distante dali, num lugar onde existiam montanhas muito altas etc... Levados pela curiosidade e pela ganância construíram um Bergantim, uma espécie de embarcação com remos, e ficaram percorrendo toda essa costa que vai de Santa Catarina até São Vicente em São Paulo. Os nativos de todas as tribos com que mantinham contato repetiam as mesmas histórias. Disseram mais... Contaram que havia um caminho que levava até aquele lugar, portanto, aquelas trilhas eram bem conhecidas de todos os povos nativos, possivelmente eram percorridas por eles desde a pré-história. Depois de ouvir tantas histórias confirmando a existência de riquezas tão grandes, em 1524 Aleixo Garcia, organizou uma expedição com dois mil índios. Previamente prepararam mantimentos, farinha de pinhão, farinha de marisco, favos de mel; iniciando essa magnifica caminhada de onde viviam, talvez próximo da foz do rio Maciambu, hoje município de Palhoça, que  fronteia o sul da ilha de Santa Catarina, até o Peru. Chegaram muito próximo de Potosí, a cidade onde foi descoberta uma montanha de Prata com 600 m de altura. Chegando lá ele atacou os postos fronteiriços do império Inca, saqueando vários cestos de ouro e prata. Voltando com essas riquezas para o Brasil, ao atravessar o Rio Paraguai, a expedição foi atacada por uma tribo chamada Paiguás, que viriam a ser chamados de piratas do rio Paraguai, nesta emboscada morre Aleixo Garcia, sendo que a maior parte das riquezas que haviam sido saqueadas foram perdidas. Porém algumas das peças de ouro e prata chegaram a Santa Catarina através de dois sobreviventes: Henrique Montes e Melchior Ramires. Sabe-se que esse dois habitavam a ilha e quando passavam novos navegantes, espanhóis ou portugueses narravam a história para esses navegadores; inclusive Henrique Montes chegou mostrar as peças de ouro para o próprio Sebastião Caboto na expedição dele em 1526. Várias outras expedições tentaram repetir a façanha de Aleixo Garcia, entre elas: Sebastião Caboto, Diogo Garcia, Martin Afonso de Souza, todos tentando chegar pela via fluvial do rio da Prata, o que era muito difícil. Pero Lobo em 1531 tentou chegar a pé, pelo mesmo caminho de Aleixo, mas também foi morto pela mesma tribo de índios.
        Então, depois de tantas frustrações, em 1539, Francisco Pizarro de uma forma incrível conquista o Peru. Essa é conquista é digna de nota, embora nada tenha a ver com nossa história sobre o caminho de Peabiru; pois ao chegar no Panamá, mais ou menos  onde hoje situa-se o canal do Panamá, Pizarro comanda o desmonte dos navios, coloca os navios desmontados nas costas de escravos indígenas fazendo eles cruzarem o istmo por uma terra pantanosa, muito difícil de atravessar, chega no outro lado, remonta os navios, navega pela costa no oceano Pacífico chegando ao Peru. Francisco Pizarro e Seu Irmão Gonçalo Pizarro, aprisionam e matam o Inca Ataualpa, inundando a Europa com enorme quantidade de ouro e prata; tanta que mudou inclusive a economia, de um sistema mercantilista, para um sistema capitalista pela acumulação de riquezas. A partir dessa conquista histórica e por conta dela, todo esse cone sul, inclusive Buenos Ayres que havia sido fundada em 1534, foi abandonado por quase cento e cinquenta anos. 
       
        Essa é a narrativa extraordinária, que coloca Naufragados e região no início  de uma jornada épica. Depois de conhecer tal história, fica difícil olhar para aquelas paisagens maravilhosamente azuis, sem que a emoção domine o meu espírito aventureiro. Lá encontro paz, enquanto a mente se agita ferozmente, tentando me ligar a outros tempos ou talvez a outras vidas. É muito difícil permanecer passivo, contemplando apenas as maravilhas naturais do lugar. Ali existiu (e ainda existe), vida em abundância. Depois que se fica sabendo a verdade sobre esse passado distante, os mortos ressuscitam e o tempo é contínuo. A mente foca a eternidade, vislumbrando todos aqueles índios emplumados, todos aqueles aventureiros e suas histórias fantásticas. Todos navegam em uma gigante caravela fantasma, repleta de emoção; muito diferente dos navios cheios de tecnologia e comunicação via satélite que hoje conhecemos. Foi um tempo em que a vida era realmente uma aventura, embora tensa em sua barbárie. Enfrentando o desconhecido, sem temor, sem ajuda, levados apenas pela intuição, aqueles seres humanos, apesar de brutos, deixaram para nós essa herança de conquistar o imaginário. Dá vontade de abandonar tudo e trilhar novamente aqueles caminhos bravios. Mas o mundo mudou! hoje dispomos de meios de transportes para qualquer situação, temos celulares, GPS, incríveis APPs. Qualquer caminho pode ser planejado milimetricamente. Somos totalmente dependentes da tecnologia, nos acostumamos ver a vida passando em uma telinha. Somos apenas espectadores enquanto eles, aqueles humanos antigos, foram protagonistas. Tá difícil segurar a mente... Preciso voltar para Naufragados!
        Mesmo desmistificando algumas teorias, que dizem haver caminhos Incas aqui dentro da nossa ilha, mesmo não tendo certeza de que tudo o que aqui foi escrito está cem por cento correto, mesmo sabendo que muito ainda precisa ser pesquisado, o enredo é esse mesmo. Se alguém quiser saber mais vai ter que procurar nos livros e narrativas de outros historiadores. Que essa história de hoje atinja os corações e as mentes acomodadas.
        Que Sejam todos bem vindos ao mundo fascinante da aventura!


Referências bibliográficas
Caminho de Peabiru - Canal Buenas Ideias - Youtube
Náufragos Traficantes e degredados - As primeiras expedições ao Brasil - Eduardo Bueno
Reinhard Maark e o caminho de Peabiru no Paraná
Luciano Azambuja - IFSC - Youtube
Caminho de Peabiru - De lá pra cá - Youtube


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