Confesso que também vivi (parte 3)

       Os anos 1970 foram um divisor de águas incrível. Acho que passei por todas as provações possíveis e imaginárias. Na grande maioria das vezes não eram sofrimentos materiais, coisas como doenças ou perdas de  pessoas próximas por falecimento. Não... as provações eram mentais. Minha cabeça redemoinhava em uma turbulenta agitação. A verdade conquistada em determinado momento; não tinha mais valor no momento seguinte. Cada certeza era imediatamente substituída por uma dúvida atroz. 
            O resultado de tudo isso era sofrimento disfarçado de alegria. Estava rodeado de amigos que se aproximavam pela energia boa do meu temperamento alegre e descontraído, as vezes irreverente demais!  Mas, no âmago, min'alma sofria demasiadamente quando me encontrava só. Era como se eu possuísse dois temperamentos. Foi um aprendizado difícil e controverso, mas aqui estou; narrando estes fatos; isto deve significar alguma coisa boa! 
       
     Quando me alistei no exército, em 1970, Nina Rosa e eu estávamos namorando. Não parecia exatamente um namoro. O clima era o melhor possível. Existia entre nós um amor puramente platônico, calmo... longe do fogo da paixão! Dava a impressão que Jamais seriamos consumidos por aquelas chamas ardentes que consomem as paixões comuns. Éramos diferentes; puros, sinceros e desmiolados o suficiente para não compreender o que se passava conosco. Da minha parte existia muita ingenuidade... Acreditem! A verdade marcante é que eu não via minha namorada como mulher. Tinha por ela um amor tão puro, tão diferente, que nunca me preocupei com as questões sexuais. Pelo menos não com ela! Afinal o que movimenta a paixão é justamente o sexo. Eu não era um simples apaixonado... Eu amava! acima de tudo e acima de todos, Nina Rosa representou aquilo que de mais puro pode haver no relacionamento entre um homem e uma mulher. para mim bastava tê-la por perto. Pois mesmo durante as ausências; era ela a presença constante em meus pensamentos. Pena que a pureza de sentimentos não seja suficiente para manter um namoro... Pelo jeito, da maneira que as coisas aconteceram, nem mesmo a amizade foi mantida.
        Aqueles tempos eram um pouco diferentes. Eu já era retrógado mesmo naquela época! Parecia não haver lugar naquele mundo para mim. Caí de paraquedas no local errado na época errada. Sentimento que até hoje guardo comigo! Meu destino deveria ser outro e num momento de pane do veiculo destino, os senhores do carma, acharam por bem me deixar estacionado no planeta, numa época de profundas transformações sociais. Eu possuía uma rebeldia inata. Chegava ser doentia! Desde minha infância, passando pela adolescência, e avançando bastante na idade adulta, era Eu um eterno inconformado. Provocava Deus e o Diabo, parentes e amigos; até mesmo autoridades provoquei... Nunca foquei em nada relacionado ao futuro! Vivia à margem da sociedade, embora não sendo marginal, pois crimes não cometi... nem mesmo um baseado fui capaz de experimentar, mesmo que tenham sido muitas as oportunidades; não despertava minha curiosidade. Talvez algum  crimezinho sem importância tenha eu praticado, pois perfeito eu não era; tão pouco, não posso hoje, considerar que fui bom no passado. O exército tentou me disciplinar, acredito que, em parte, conseguiu. Minha vida militar foi ridícula, muito mais do que minha própria existência até aquele momento. Pior, eu poderia ter sido dispensado do serviço militar. Não quis... Eu queria guerra, buscava desafios gloriosos, queria atos de heroísmo, por certo me imaginava uma super homem. Hoje, olhando para aquele passado tão distante, vejo o quanto fui inconsequente. mas foi assim, acho também que assim deveria ter sido, pois eram estas as lições que eu precisava, no meu estágio terreal. É certo que minha juventude foi muito influenciada pela literatura. Pablo Neruda, Castanheda, Jorge Amado, Antônio Callado, machado de Assis, misturaram em minha mente a poesia, rebeldia, espiritualidade e inconformação. Cheguei ao ponto, em plena ditadura militar, inclusive durante meu serviço militar, adotar como heróis Che Guevara e Fidel Castro. Confesso que ainda hoje tenho certa queda pelo romantismo das revoluções daquela época. Entretanto era muito difícil a vida, com tais heróis motivando a conduta. Mais ainda, porque eu não dispunha de conhecimento, portanto, sem capacidade de argumentação. Quando nos faltam palavras e inteligência emocional para o debate, resulta em confrontos. Garanto que muito me debati nestas escaramuças! Hoje percebo que fui derrotado pela razão e pela lógica. não poderia ser diferente; afinal quem era eu? Sem nome e sem berço... figura comum, sem cultura, com inspirações ridículas, impossíveis de serem alcançadas. Um errôneo senso de perfeição que muito estrago causou, antes que pudesse começar a construir. Até a minha passagem pelo exército, como já mencionei, eu tinha um comportamento bipolar. Ao mesmo tempo que atitudes altruístas elevadas eram praticadas, qualquer descontentamento me conduzia para as vias de fato. Sempre fui muito franzino, magro e desengonçado. Essa desqualificação física, foi compensada por grande agilidade corporal. Eu era muito rápido e dotado de excelente visão, isso influenciava demais minhas reações. Aprendi tirar proveito desta situação. O resultado foi me tornar brigão. Meus pais muito foram chamados nas escolas que frequentei, por conta das brigas, quase sempre vitoriosas para mim. Tanto que aprendi a gostar. Tornou-se então uma saída regular para as divergências. Quando a questão falhava em argumentação prontamente era compensada pela compra de briga. As vezes alheia! Foi um ridículo período, mas eu possuía extrema auto confiança. Esta força interna adquirida nos combates, fizeram superar os limites de minha própria ignorância, mas, por incrível que pareça, me deu forças para me erguer e reconstruir minha personalidade, num momento em que tudo me pareceu perdido.
        Foi uma época difícil, mas também profícua! Meus anseios e desvarios me conduziram por um caminho pouco materialista. Porém uma trilha árdua, onde os ensinamentos eram sempre obtidos da pior maneira. Não foi diferente em meu relacionamento com a Nina Rosa. Talvez Ela e Eu fôssemos parecidos demais. Talvez! Até hoje me questiono a respeito. O tempo passa rápido demais; meu turbulento serviço militar também passou. Sobrevivi a todas as punições disciplinares que sofri. Nada se complicou apesar de ter passado mais de um terço, do tempo de serviço, aquartelado... preso ou detido! Mas, não sei porque razão, eu despertava na maioria das pessoas, certo grau de amizade e bem querer. Com todos os perrengues que passei na caserna, fiz muitos amigos, tanto entre os iguais quanto com os superiores. Fiz também alguns inimigos, entretanto, me parece, na média aconteceram mais coisas boas do que ruins. Como soldado eu aprontei demais, foram muitos atos indisciplinados que, por incrível possa parecer, foram sempre amenizados, principalmente pelos sargentos e subtenentes, pois estas eram as patentes com as quais mais eu convivia. O engraçado em tudo isso foi que minha rebeldia e irreverência, que me levaram cumprir várias penas de detenção, me levou a conquistar o único elogio com honrarias, que eu recebi na minha curta carreira. 
        Prestei meu serviço militar na CCM do Colégio Militar de Porto Alegre. Nossa Cia. dava apoio aos alunos no Colégio, no treinamento militar básico, que eles recebiam durante a formação secundarista. O quartel da companhia era separado do Colégio Militar. Ficava na rua Santana, bem no fim da rua, ali formava um triângulo com a rua Santana, a Avenida bento Gonçalves e uma travessa que unia a rua com a avenida. O colégio ficava, ainda fica, na José Bonifácio em frente ao parque da Redenção. Parte dos soldados prestava serviço na Cia. (era o meu caso), outros prestavam serviço no Colégio militar, uns poucos ainda, prestavam serviço numa granja situada na Vila Nova, onde eram produzidos algumas hortaliças e criavam porcos. O comandante geral do Colégio era o Cel. Jonas. A companhia era comandada pelo Capitão carvalho, que era a patente mais alta por lá. Abaixo dele existia um primeiro e um segundo tenentes, dois subtenentes, o primeiro Sargento Bizzi era o sargenteante da cia. Ainda faziam parte do grupo alguns segundos e terceiros sargentos, dois cabos e uns trinta soldados, entre praças velhos e recrutas. O restante da corporação raramente víamos, pois eram lotados no Colégio. Eventualmente os alunos participavam de manobras e nós é quem apoiávamos, montando toda a infra estrutura. Barracas, rancho, transporte, armamentos etc... O filho do Cel. comandante, era aluno do colégio; frequentava nossa Cia. amiúde. Era um jovem prepotente e mal educado, seguidamente visitava a unidade acompanhado pela namorada, uma linda e elegante menina. Nunca entendemos as razões dele para aquelas visitas. Mas quando ele chagava ficávamos todos com o pé atrás. Vivia dando ordens e pedindo para que servíssemos cafezinho ou suco. Ele não possuía autoridade nenhuma como aluno, mantínhamos nosso respeito por ele ser filho do comandante. Mas o cara era insuportável! aos poucos a soldadesca pegou implicância e começou reagir contra as atitudes dele. Faziam sacanagens tipo, trocar açúcar por sal no açucareiro, ou colocar um pouco de laxante do suco. Criou-se então uma  guerra tácita entre nós e ele. Certo dia eu estava de serviço no portão principal da cia. Naquela época, auge da ditadura militar, os portões eram fechados as dezoito horas. Colocávamos obstáculos construídos com trilos de trem na frente do portão e isolávamos toda a área do quartel com cordas e obstáculos que interditavam parte da rua, forçando pedestres e veículos a circular afastados do muro e da calçada, no lado da unidade. Também não era permitido estacionar ou parar na frente do quartel depois deste horário. A guarda era formada por  nove soldados, um cabo da guarda e um sargento de dia, além dos "ratões" (aqueles milicos que viviam no quartel), os únicos que permaneciam por lá depois das dezoito horas era o pessoal do corpo da guarda. Quartel fechado a guarda se revezava em turnos de duas horas. Naquele dia eu tinha sido sorteado com o segundo turno, considerado o mais desgastante. Estava eu plantado em frente ao portão principal, entrada de veículos e pessoas, ficava ao lado uma guarita, que só usávamos em dias de chuva ou muito frio, quando, de repente, estaciona um carro do outro lado da rua. Coisa que era proibida! De dentro do carro saiu todo pomposo o dito filho do Coronel. Avançou com passo firme em direção ao portão que eu guarnecia. Cruzei meu fuzil com baioneta calada, e dei voz de comando, conforme mandavam os procedimentos.
- Alto lá!
O cara continuou avançando, crente que eu não tomaria nenhuma atitude. Gritei então pela segunda vez o comando:
- Alto lá!
Mal terminei de falar o segundo comando quando ele abriu o trinco do portão dando a impressão que continuaria a invasão; pouco se importando com minha ordem. Eu já tinha sofrido várias punições por indisciplina e tinha uma enorme vontade de me vingar das arrogâncias que aquele bosta da mesma idade que eu vivia cometendo. Era aquela a minha chance! com um movimento rápido no ferrolho do FO, coloquei uma bala na câmara, deixando o fuzil em condição de atirar; minha expressão era raivosa. Realmente naquele momento toda a raiva do mundo se abateu sobre mim. Num gesto brusco e com força, espetei a baioneta no osso do peito do intruso e com a voz esganiçada gritei:
- Alto ou eu atiro!
Não sei se pela dor da espetada, ou pelo meu olhar raivoso, ele parou,,, com olhos esbugalhados balbuciou alguma coisa e logo em seguida conclui:
- Não tá me reconhecendo soldado?
Retruquei!
- Alto ou eu atiro!
A esta altura dos acontecimentos o tom das vozes já havia se elevado bastante, o suficiente para que o sargento de dia saísse rapidamente do seu posto, dirigindo-se até o portão. Presenciou aquela cena. Eu com arma engatilhada e baioneta cravada no peito de um invasor que eu fingia não reconhecer. Reconhecendo quem era a figura assustada, o sargentão me dispensou e assumiu o comando. Continuei no meu posto normalmente. O sujeitinho tinha ido lá apenas com a intenção de zoar, bancando o oficial de ronda, tentando pegar sentinelas da hora, que estivessem desatentos. O rapaz conversou com o sargento de dia e foi embora. A noite passou sem outros atropelos. No dia seguinte, durante a troca de guarda foi feito o relatório da alteração ocorrida. O relatório foi para o comando do colégio Militar, cujo comandante era pai do invasor. Me preparei para ficar de molho no quartel por um bom tempo. Imaginei que desta vez seria cadeia. Todo mundo naquele dia só comentava sobre isso. No final do dia, quando recebemos o boletim vindo do colégio Militar, qual foi minha surpresa: Ao invés de punição um elogio, enaltecendo minha atitude como sentinela e me colocando como exemplo para todos daquela unidade, assinado pelo Coronel Jonas de Morais Correa Neto, pai do meu desafeto. Depois deste episódio nunca mais aquele rapaz colocou os pés em nossa unidade; não sei se foi por vergonha ou foi proibido. Da minha parte, tive nesse episódio, meus quinze minutos de fama!
        Quanto ao resto da minha história, terão que esperar a parte quatro. Se você ainda não leu as duas primeiras partes aproveite... leia. Depois faça seus comentários lá no blog, assim você ajudará na melhoria do conteúdo.

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