Confesso que também vivi! (parte 1)

     No final dos anos setenta me deparei com a obra "Confesso que vivi" de Pablo Neruda. Foi o primeiro contato que tive com o poeta. Fiquei impressionado com aquele estilo poético utilizado para escrever a auto-biografia dele. Hoje; mais de quarenta anos se passaram, sinto-me cada vez mais entrelaçado ao estilo e a vida daquele que marcou e, de certa forma, modificou profundamente minha conduta como ser humano. Somos seres emocionais, e sem emoções não existe plenitude de vida!

            Hoje sou um ser reflexivo. Não que eu esteja acomodado, libertado de todas as emoções. Apenas vivo um momento de ponderação. Não mergulho mais de cabeça sem antes observar as profundezas obscuras da água e o que podem elas esconder. Não me considero sábio e a experiência obtida através dos erros tem foco no passado. Se não vivo mais lá, porque as lembranças haveriam de ser úteis no presente? Ah! eis aí a grande questão da vida! Tudo vale a pena relembrar quando está impregnado de  emoções! As brincadeiras da infância, os  mistérios e descobertas comandados pela ingenuidade, o primeiro amor. 
 - Como é bom lembrar do primeiro amor! Quanta pureza! Um sentimento inexplicável, só pode ser valorizado por quem sentiu a força daquela vibração interior; capaz de revirar o estômago, confundir a mente, como se tivéssemos usado algum tipo de droga. Um amor sem erotismo é verdade, não temperado com a poderosa energia do sexo, mas não menos vibrante. Talvez mais sublime. Quando lembro destas primeiras manifestações me vejo obrigado a confessar que também vivi! E não quero nesta revelação tão íntima parafrasear o poeta Neruda. Não... Quero falar da minha vida, qualquer semelhança com a vida dele é mera coincidência.

        Começo aqui meu relato falando justamente deste amor infantil. Talvez analisando, agora, em tempos quase senis, algo que foi tão importante para mim naquela tenra idade. As lembranças parecem vivas, como um filme gravado na memória. Talvez com mais clareza que os fatos ocorridos ontem. Lembro da minha casa, no bairro da Glória em Porto Alegre. A cidade, naquela época não era a selva de pedra de hoje. Havia muito espaço, muita natureza. Uma criança com seis anos de idade, circulava pelo bairro como se fosse um adulto e todos se conheciam. Não existiam fronteiras nem proibições, muito menos compromissos importantes. Apenas seguir um regulamento simples, normalmente imposto pela mãe, pois o pai era o provedor do lar. A ele competia trazer o pão nosso de cada dia; para a mãe ficava a tarefa de educar. Era uma educação simples, mas muito rígida. Quebrar as normas estabelecidas, significava uma surra de vara de marmelo. Havia uma, sempre pronta e acessível, pendurada atrás da porta dos fundos da casa que vivíamos. Tinha até nome, chamava-se "Catarina". Muitas vezes a Catarina usou meu lombo como instrumento de percussão. Dentre as obrigações existiam duas que eram lavadas mais a sério, a faxina diária da casa e os horários de almoço e de final de tarde. Quando meu pai chegasse do serviço eu precisava estar bem limpinho, de banho tomado e cara sorridente... pobre de mim se fizesse alguma queixa do que acontecera durante o dia! Normalmente a faxina diária ocorria logo depois do café da manhã. era uma limpeza básica; um espanador de pó feito de penas e uma vassoura eram os únicos instrumentos necessários. No sábado era um pouco mais complicado. Envolvia limpeza do pátio e vidraças. A casa era enorme, chamávamos de casa Gêmea; era um grande chalé com duas águas de telhado. Tinha um pé direito bem alto destacando o imenso oitão frontal que culminava em forma de vê; ficava situado no centro de um terreno muito amplo, parecia uma chácara. O chalé era dividido em dois, igualitariamente; cada metade era uma residência. Eram também iguais as porções do terreno que cada morador usufruía. Apenas uma parede simples, de madeira, dividia as duas residências. No alto do oitão existiam duas janelinha muito próximas; uma de cada residência. Elas eram as únicas aberturas do imenso sótão que ocupava toda a extensão da casa. Aquelas janelinhas eram por onde nos comunicávamos, Eu e meu amigo Luiz Fernando. À noite estávamos sempre debruçados naquelas janelas conversando até algumas horas da noite. Frequentemente, sem que nossos pais soubessem, pulávamos de uma para outra para brincar num dos sótãos. Se fôssemos flagrados pulando aquelas janelas certamente a Catarina iria "cantar" como costumava dizer minha mãe antes da surra; pois as janelinhas eram estreitas e ficavam numa altura razoável; um tombo certamente causaria graves contusões. Olhando de frente eu morava no lado direito e o Fernando à esquerda. As duas residências eram exatamente iguais como se uma fosse a projeção da outra em um espelho. Só era possível identificar que eram duas moradias devido a uma cerquinha de madeira que dividia o terreno ao meio. Na frente e nos fundos haviam portões  para que os vizinhos tivessem livre acesso ao pátio do outro. Nos fundos, separado por uns cinco metros da casa havia uma edícula também geminada. Para seu Rosalino, pai do Fernando, a construção era usada como galpão; meu pai usava como oficina de eletrônica e ali fazia seus experimentos com rádio comunicação. No sábado tínhamos que limpar tudo aquilo; para completar o trabalho havia um cercado que servia de galinheiro. Ali estavam sempre na engorda as galinhas que seriam abatidas para nossas refeições e aquelas que eram responsáveis pela postura de ovos, . Todas acompanhadas por um galo vermelho, que periodicamente era substituído por outro mais novo, porém sempre da mesma raça; o destino do galo velho era a panela. Bem no centro do cercado existia um enorme pé de caqui, já bem velho, mas produzia muita fruta, talvez por conta da adubação da terra. Muitas galinhas dormiam empoleiradas nele. Minha mãe sempre muito rigorosa com a higiene do galinheiro, aproveitava sempre o esterco retirado de lá destinando para os canteiros dos jardins que circundavam as casas. Muitas roseiras, dálias, cravos, margaridas, onze horas, emprestavam para aqueles jardins um esplêndido colorido. Depois da faxina liberdade total! Então saía com meu amigo Luiz Fernando para as aventuras pelos locais mais recônditos do bairro. Depois, na hora do almoço, aventura interrompida. por cerca de duas horas. Tempo para almoçar e sestear. Daí continuávamos os desbravamentos até o cair da noite. Tudo isso foi antes dos compromissos escolares. Convivíamos com pouca gente naquele cantinho de mundo, mas sempre surgiam brincadeiras e brigas. Quando brigávamos e apanhávamos não podíamos nos queixar para nossas mães tentando buscar algum alento, por certo apanharíamos de novo, para aprendermos a ser homens.

         Tudo começou a se modificar profundamente quando chegou a idade escolar. Mais precisamente a pré-escola. Com seis anos de idade fui matriculado no Jardim de infância "Meu cantinho", que tinha como diretora a professora Marieta. Para mim foi um choque, uma afronta a minha liberdade. Praticamente me separei de meu grande amigo, pois ele foi matriculado em outra escolinha. Meu primeiro ato de rebeldia com a escola foi imediatamente sufocado. Fui levado quase que de arrasto para a primeira aula, incomodei tanto minha mãe, que ela arrancou uma varinha fina, de uma árvore existente no pátio da escolinha, pediu licença para a diretora, me levou para os fundos, longe da vista de todos e executou sua sentença. Fiquei com as pernas lanhadas de vara. Mas não chorei! Tive que assistir a primeira aula; cheio de revolta. Então, como vingança, me propus a infernizar a vida da professora. Confesso que foi uma decisão errada... no final da tarde dona Marieta narrou tudo para minha mãe, quando ela foi me buscar. Ao chegar em casa outra execução de vara! Daí já pude tirar minhas próprias conclusões sobre o comportamento que eu deveria ter.

              Foi aí neste meio escolar tão simples e ingênuo, que comecei a conviver diariamente com meninas. Como se fosse coisa de destino, minha primeira simpatia foi pela Maria da Graça. Ela foi a motivação para que eu frequentasse a pré-escola com alegria. Dona Marieta, a diretora, gostava muito de organizar pequenas peças de teatro. Criava personagens baseados em lendas gaúchas e filmes da época. Minha revolta se exaltava quando por contingência da interpretação eu era separado da Maria da Graça, tendo que encenar com outras meninas o papel que Eu gostaria de interpretar  junto com minha favorita amiga. Cada ato de rebeldia, devidamente relatado para minha mãe e a vara de execuções voltava a funcionar. Com o tempo a professora percebeu a minha afinidade com a guria e começou a nos colocar sempre juntos. Aquele ano foi maravilhoso; tenho a impressão que, no decorrer dele, despertei certo gosto pelo teatro, embora eu não soubesse direito o que significava a palavra. Passou rápido e, no ano seguinte, foi a vez de encarar a escola com mais seriedade, primeiro ano do primário. Fui matriculado no Colégio Cruzeiro do Sul e minha querida Maria da Graça ficou no passado, se não foi por mim esquecida, também nunca mais por mim foi vista! Nesta mesma época mudou-se para o bairro a Regina Helena. Veio morar em uma casa próxima na parte alta da rua Aparício Borges; a minha casa ficava enterrada numa baixada logo após um riacho; para chegar nela só  a pé. Nenhum veiculo motorizado poderia circular ali, embora nosso endereço constasse com "rua Aparício Borges 340", a casa ficava bem afastada da rua.  Acho que a Regina Helena foi o primeiro amor verdadeiro da minha vida. Amor a primeira vista! Quanta beleza eu via naquela guria. Nela tudo me encantava. Lembro-me dela aprendendo a andar de bicicleta; naquela época dizíamos bicicleta de duas rodas, para fazer diferenciação dos triciclos, brinquedinhos de pedal que erroneamente chamávamos de bicicleta; pois bem, como não sabíamos andar naquele veículo, brincávamos empurrando e segurando a bicicleta para que o piloto pudesse andar. Normalmente dois empurravam e um pilotava. Íamos trocando; um pouco empurrávamos a bicicleta, outro pouco dirigíamos. A maior emoção durante estas brincadeiras, era quando ao empurrar a bicicleta coincidia Eu e a Regina Helena como a dupla impulsionadora; ficávamos então bem próximos um do outro e nossas mãos se tocavam. Para mim era um momento mágico! me fazia tanto bem, eriçava minha pele sentir o calor daquelas mãozinhas tocando as minhas. Foi também minha primeira frustração. Mágico porque foi a primeira vez que toquei com certo erotismo a mão de uma menina linda e que eu gostava. Frustração por conta das proibições, preconceitos que meninos e meninas não podiam brincar juntos; acompanhado por uma enorme dose de timidez que sempre guardei comigo. Não eram muito frequentes nossos contatos. A escola começou barrar demais minha liberdade; Eu sentia me impedindo de estar junto com ela. Os compromissos domésticos e a necessidade de aprender começaram a ser questionados por mim. Eu só queria estar perto da Regina Helena e, de alguma forma, poder tocar as mãos dela.

          Para completar minha frustração, até este momento, meus avós paternos moravam junto conosco na tal casa gêmea. Mas resolveram mudar-se para o bairro lindeiro de Teresópolis. Mais precisamente no alto Teresópolis, pois minha tia havia comprado lá uma casa com terreno muito grande, e construiu nos fundos uma casinha para meus avós. Com a mudança deles passei a conviver mais com meus primos, Marli e Mauri, passava mais tempo, principalmente finais de semana, em Teresópolis, pois de onde morávamos era apenas alguns minutos de caminhada até a nova casa de meus avós. Não pude mais dar atenção para a menina dos meus olhos, deixando de lado, mas não no esquecimento, minha amada Regina Helena.
           Assim fui crescendo e  a minha primeira paixão aumentando. Então mudamos de endereço por conta dos negócios de meu pai. Mudamos de bairro e me afastei definitivamente do meu primeiro amor. O estranho em tudo isso é ainda lembrar, com tanto carinho e emoção esse tempo tão distante. Passados cerca de dois anos depois da mudança perdi totalmente o contato com a Regina Helena, meu primeiro e real bem querer. O amor é feito de desencontros. Esta foi a primeira prova efetiva que tive sobre o fato. Os anos passaram rapidamente. Logo me tornei adolescente, e pra complicar com poucos encantos físicos. Me tornei um Nerd, pior, um nerd apaixonado, cujo pensamento gritava apenas um nome... "Regina Helena". Por onde andaria minha tão amada criatura?  

            O tempo continuou passando, e as surpresas das paixões foram contínuas e contundentes. Mas vou ter que deixar para outra oportunidade, contar os fatos do jeito que aconteceram. Foram tantos desencontros e tantas emoções que minha mente se confunde. Preciso dar um pouco de tempo a ela (minha mente), a fim de recuperar a cronometria. Também não quero estender demais, pois sei que um texto muito extenso será um sério problema para a maioria dos meus leitores!
              Mas a história não termina aqui...

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