Espírito Aventureiro
Eram quatro
horas da madrugada! Dois companheiros de aventura aguardavam a Van que os
levaria para uma atividade pouco convencional. O mês era janeiro e uma
insistente garoa e vento deixavam a temperatura bem mais baixa que o normal
para aquela época do ano. Evandro e Eu aguardávamos pacientemente, abrigados na
cobertura do posto Ipiranga da BR 116 com a Frederico Link, na entrada da
cidade de Novo Hamburgo. As mochilas que carregávamos estavam largadas
displicentemente no chão, atiradas, com seus quase trinta quilos de peso cada
uma. Nelas estavam provisões para três dias, roupas, calçados, barraca,
apetrechos diversos com faca, fogareiro, saco de dormir. Dividíamos
igualitariamente a carga das mochilas a fim de não sobrecarregar ninguém. Ali,
naquele momento silencioso da manhã o tempo se arrastava. Meia hora de espera
naquele frio, com o vento esparramando aquela fina garoa, pouco adiantava nossa
proteção no abrigo do posto, a impressão era que estávamos ali a muitas horas.
Finalmente chegou. Parou bem a nossa frente e o Fernando Lamb nos cumprimentou
com um sorriso irônico, fez uma breve inspeção visual em nossas mochilas e
indumentária, teceu alguns comentários e abriu a porta deslizante lateral para
que pudéssemos entrar. Quando aquela porta se abriu tivemos uma visão do caos.
Gente e mochilas empilhadas. Parecia não haver lugar para acomodar mais dois
passageiros. Teríamos que enfrentar umas três horas de viagem até Cambará do
Sul, no canion Fortaleza, naquelas acomodações espartanas. Com dificuldade
conseguimos acomodar nossas mochilas e nossos corpos naquela lotação que mais
parecia um pau de arara deixando o cariri. Então, já seguindo para nosso
destino, foi possível visualizar e conversar com os demais participantes. Alexandre
Fabris (Xande) e Débora, Helenilton (Maninho) e Rogéria formavam dois alegres casais, depois
o José Everaldo, Nei Alexandre (Montanha),
Guilherme (treze), João Rigo, Walter Maria (ADJ), Fernando Lamb. Eu era novo na
turma, fui apresentado pelo Evandro, mas não foi difícil a integração. Formamos
um grupo eclético, doze apóstolos da aventura.
O trajeto
até Cambará do Sul foi abaixo de água! Uma chuva, as vezes intensa demais, que
contrariava as previsões do tempo. Quando chegamos no Parque Nacional da Serra
Geral, onde está localizado o Canion Fortaleza, o céu estava nublado e, de vez
em quando, uma pancada de chuva. Nossa aventura consistiria em atravessar aqueles
paredões a partir da sua parte alta, no Rio Grande do Sul, terminando a
travessia em Jacinto Machado, na parte baixa, já em Santa Catarina. Iniciamos a
jornada por volta de onze horas da manhã, com chuva, só para variar! Tive a
impressão que havíamos acompanhado a previsão do tempo para Fortaleza no Ceará,
pois para nossa atividade todos os institutos de meteorologia previam sol e céu
limpo. Havia inclusive certa preocupação em descer o canion com chuva.
Os
primeiros movimentos foram difíceis. A trilha seguia pelo leito do rio, que era
composto por blocos de pedra e cascalho de todos os tamanhos. Muitas vezes não
conseguíamos ver onde pisávamos, as quedas eram constante. Não fosse isso o
suficiente constantemente tínhamos que superar terríveis obstáculos, em sua
maioria grande blocos de granito. Depois de algumas horas caminhando nossas
mochilas, que já eram pesadas, pareciam ter dobrado o peso. O primeiro dia foi
terrível, por sorte, por volta de meio dia, o sol resolveu aparecer de vez,
brilhando intensamente. Só para dar uma ideia nossa velocidade média de
deslocamento foi de 400 m/h. Uma tartaruga poderia apostar corrida conosco. O
plano era acampar em um local pré determinado pelo Fernando, pois era ele o
guia e organizador do evento. Até porque não se pode acampar em qualquer lugar
no interior de um canion. Com o deslocamento muito lento, devido ao grande
esforço físico, resolvemos encerrar mais cedo neste dia. Encontramos um ótimo
ponto, em nível elevado em relação ao leito do rio. Por volta de 15:30
começamos a preparar o acampamento para a primeira noite do interior do canion.
O cansaço era visível e generalizado. Além da fadiga, muitos canelas esfoladas,
joelhos doloridos, tornozelos inchados e até alguns hematomas. Evandro era o
enfermeiro da turma. Com ele estava o kit de primeiros socorros. Neste dia ele
aliviou muitas dores, aplicando injeções de relaxante muscular. Acampamento
pronto, um banho nas águas geladas do rio e colocar uma roupa seca. Preparei
meu jantar a exemplo dos demais acompanhado por um chá de folhas de coca, que o
João Rigo havia trazido, da Bolívia, se não me falha a memória. Escurece cedo
naquelas grotas, e cedo me recolhi. Literalmente desmaiei!
Cinco e
meia da manhã. Ainda era escuro mas o fogo já cintilava na escuridão da manhã
do segundo dia. Com cara de sono e profundas olheiras, os aventureiros iam aos
poucos despertando. Um ritual semelhante. Lavar a cara na água gelada do rio,
escovar os dentes e preparar a primeira refeição do dia, depois desmontar
acampamento e seguir viagem. Era sábado, talvez por isso os primeiros raios do
sol brilharam com impressionante luz, parecia preencher cada alma ali presente
de alegria e uma impressionante energia. Alguns meio capengas, outros com dores
musculares, feridas, mas nenhuma queixa. Nenhuma manifestação de desânimo ou
arrependimento. O amanhecer foi de sorrisos, gozações e diversão. Os primeiros
procedimentos de pois da alimentação foi desmanchar o acampamento, deixando
tudo como deveria estar antes de nossa chegada. “Leave no trace”, eis a
filosofia. O fogo foi extinto e as pedras que serviam de proteção recolocadas
no lugar onde haviam sido tiradas. As cinzas foram esparramadas, literalmente pulverizadas
e alguns carvões enterrados. Iniciamos o segundo dia de caminhada, todos
equipados com cadeirinhas, pois teríamos que fazer um rapel logo no início da
segunda etapa da jornada. A Trilha continuava sendo, em maior parte, o leito do
rio. Logo nos primeiros movimentos já estávamos com as roupas encharcadas. Não foi
difícil transpor o obstáculo da primeira cachoeira, onde fizemos rapel. Já havíamos
desbordado outras duas sem a necessidade de usar as cordas. Além disso ainda
estavam no caminho imensos blocos de pedra, obstáculos que precisavam serem
vencidos.
Tudo ia
bem, até nos depararmos com um grande desmoronamento natural, provavelmente
ocorrido muito tempo antes de nossa passagem. Deve ter sido uma avalanche de
pedras, árvores e terra, que obstruiu completamente a trilha, bem próximo do
local onde deveríamos fazer um segundo rapel. Foi preciso abrir picada para
encontrar um ponto ideal para descer. Este imprevisto nos custou quatro horas
de atraso. Parecia que não seria possível continuar a partir dali. Porém voltar
era impossível. Se o cansaço já era grande, neste momento tornou-se fadiga. Mas
o sofrimento era compensado pelas paisagens paradisíacas que nossos olhos
deslumbravam. Também pelo companheirismo que havia. Muita motivação. O Fernando
como líder cantava todos os hinos militares que sabia. De cada arma,
infantaria, artilharia e sei lá o que mais. Interessante é que aqueles hinos
ajudavam manter elevado o moral de nossa pequena tropa. O ADJ, levava consigo
um litro de “graspa”. De vez em quando dávamos uma bicada, de leve, pra manter
o peito aquecido, pois, como já foi dito, o rio era de águas geladas. Por volta
de dezesseis horas montamos acampamento em local seguro. Não estava sendo fácil
continuar. Meus joelhos doíam, meus tornozelos estavam inchados. Quase não
tinha força para subir em um mísero bloco de pedra. Mas todos se ajudavam. Cada
um colaborava como podia. A Débora e a Rogéria davam amostra da garra e força
das mulheres, insuperáveis! Montamos acampamento e desmaiei pelo segundo dia
consecutivo!
Não vi a
noite passar! Devo ter dormido um sono só; com umas oito horas de duração.
Acordei com a algazarra dos que já estavam preparando o café da manhã junto ao
fogo. O dia já havia raiado e as primeiras luzes do domingo indicavam que seria
outro lindo e iluminado período. Ali ao pé do fogo em conversas animadas traçávamos
a estratégia para percorrer o trecho final. Algumas reflexões sobre os dois
dias anteriores. Afinal em um fim de semana onde poderíamos estar no aconchego
de nossos lares, ou badalando em alguma festa, estávamos ali. Estropiados e
doloridos. Algumas roupas rasgadas, mochilas em fiapos. Felizmente o trecho
final se vislumbrava mais brando. Sem os imensos blocos, mais plano também.
Parece que as pedras vieram diminuindo de tamanho à medida que avançávamos. Naquele
ponto o leito do rio era formado, basicamente, por cascalho. Não foi tão difícil
vencer os obstáculos finais. As quinze horas de domingo chegamos no ponto de
escape do canion. Onde a Van nos aguardava para o retorno a Porto Alegre. E a
história desta travessia faz parte do passado, mas permanece viva na memória.
Algumas
semanas depois nos encontramos numa festa comemorativa, para relembrar o feito.
Com exceção do Evandro, que encontro com certa frequência, foi a última vez que
vi o pessoal reunido. Com Débora, Xande, Everaldo ainda mantenho contato, via redes
sociais. Com Fernando perdi o contato no Facebook a pouco tempo. O mais trágico
talvez tenha sido a história do Helenilton Schaeffer (Maninho), que faleceu em um acidente aéreo,
quando uma aeronave da FAB proveniente de Canoas – RS caiu em Bom Jardim da
Serra – SC, no dia 02/08/2011. São as lições que a vida nos ensina. Temos aqui
o tempo de permanência necessário para nossa evolução espiritual. A vida é
contínua! Precisamos seguir em frente.
Carpe diem!

Texto longo mas depois que começa a ler vai sentindo a aventura, fotos ótimas, a da menina pulando na água de roupa me impressionou, quem bateu pegou o momento exato, passa muita alegria
ResponderExcluirDa pra sentir a emoção da aventura em cada palavra, muito incrível kako!!!
ResponderExcluir